Expelido, O Verme: Os Deuses Devem Estar Mortos


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Expelido, O Verme: Os Deuses Devem Estar Mortos

 

Quando fui expulso da comunidade que participava, descobri que as pessoas que eu supunha amigas não moveriam um dedo para me ajudar, apoiar ou confortar. Senti-me como um verme que, depois de ficar muitos anos sobrevivendo dentro de um hospedeiro, é finalmente expelido através da ação de um vermífugo. Este texto, escrito em 2002, é o ponto-de-vista de um verme, que depois de crescer feliz, é arrancado de seu habitat, descobrindo que não passava de um parasita para o organismo que ele considerava um lar.

 

Monólogo

Quando entrei naquela escuridão, as papilas gustativas foram a indicação segura de que o local seria meu lugar definitivo. Eu ia finalmente fincar minhas garras em um local meu, depois de tantos ir-e-vir pelos ares e poças d’água. Salivar é um bom começo, alimentar é um bom meio e permanecer é um bom fim. Eu estava começando onde todos querem acabar: no céu.

Durante muitos meses, travei batalhas. A conseqüência imediata da adrenalina e da excitação era um excesso nocivo de suco gástrico. Mas era justamente isso que, sem intenções, dava-me forças. Dessa guerra divertida, a sobrevivência era um fator revelador de que eu ficaria lá por muito tempo. Eu cresci, de tal modo, que permanecer parecia ser a melhor opção.

Outros abandonaram a luta ou sucumbiram onde eu ganhava densidade e tamanho. Eu estava tão à vontade, que jamais imaginei que um dia eu teria de encontrar um outro lugar para morar. Eu estava em boa companhia, era bem quisto, era uma incômoda simbiose, era parte do organismo, eu era eu mesmo.

O anjo de luz surgiu e iluminou nossa vida pacata. O imponderável anjo veio salvar o organismo da complacência. Minhas garras afiadas nem eram armas, mas o anjo veio roubar meu espaço de vida. Para o anjo, a luz era apenas diversão, mas para mim, era uma luta que significaria minha eliminação.

O anjo sorriu para mim enquanto tocava meus amigos com sua voz bondosa e seu hálito de enxofre. Suas caudas, reviravoltas davam, e cada companheiro que tombava era como um pedaço arrancado de mim. Meus anéis foram jogados fora. Anjo sorrateiro, que se voltava contra nós, brandindo lâminas invisíveis e cravando-nos suas lanças, causava um bem-estar de indiferença. Tal indiferença era tão estranha que o organismo poderia pensar que dificilmente esteve melhor.

Partes de mim, vi tombando e sendo digeridas como alimento. Nas paredes procurei meu apoio, mas elas não estavam lá para segurar-me, como eu acreditava que estariam. Estavam lá para sorver o alimento que eu roubava dos deuses. As paredes não têm ouvidos. Os deuses não me socorreram: eu não tinha a força e o respeito que pensava merecer?

Levantei-me para reagir e minhas garras foram envoltas em fogo. Eu estava flutuando como nunca estivera, pronto para ser destruído. Recebi golpes. Machucaram-me. Retalharam-me. Resisti. Apliquei golpes sorrateiros contra o intruso. Mas o silêncio da minha luta convenceu-me de que o intruso era eu.

Eu, sozinho, como o destino disse que seria.

Roubei do anjo suas lanças e tentei atingi-lo, numa reação desesperada. O anjo flutuou sobre minha cabeça e incinerou minhas vilosidades, bateu-me sem pena e derrubou-me contra as paredes que eu amava. Tratou de mim como se trata um verme. O chão abriu-se e um abismo negro surgiu sob mim. Fiquei perigosamente imobilizado, ao lado do ponto de queda, pronto para ser destruído.

O anjo jogou-me fezes no rosto e empurrou-me para um lugar que não tinha luz, ar, nada. Eu estava sendo esmagado em um túnel, conduzido na direção contrária ao céu. Golpes no escuro, desfechados pelas paredes em contração, empurravam-me até um lugar onde eu deveria agonizar, antes da expulsão e morte.

Agora tinha eu certeza, de que não passava de um grande verme. Um poço de dejetos era meu último lar. Tentei, ainda, perfurar as paredes do poço e escapar de morrer, afogado, cercado por aquilo que não é desejado. Uma reação violenta e contrária tirou meu último fôlego e fui expelido para a morte. Fui conduzido para a terra, asfixiado pela luz, para queimar lentamente em contato com o ar.


© Victor M. Sant’Anna 2007
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