Vocês Viram Meu Cachorro?
(Para minha namorada)
13 de junho de 1999
– Vocês viram meu cachorro?
Hmmm… é época de eleição, não, é? Eu votei naquele prefeito que construiu vários viadutos. Bom prefeito! Viaduto é bom, quando a gente não tem casa…
Naquele tempo, todo mundo vinha morar debaixo dos viadutos, mas o prefeito sempre mandava construir outro. Quando um viaduto estava lotado, eles logo já tinham outro prontinho. Planejamento urbano! Quanto mais gente vinha, mais viaduto ele construía. Um, dois, três… dez! Se ele não tivesse fugido para a Suíça, isso aqui teria virado só viaduto! Mas não era viaduto vagabundo, com goteira, não. Era viaduto de primeira linha! Até viaduto que não passava carro ele mandou construir! Muito bonzinho… só faltou votar por mim.
Depois veio aquele prefeito que ajudava os pobres… aquele lá…
Dava comida para a gente quando era candidato. Normalmente, ele fazia uma fila enorme e apertava nossas mãos. Apertava e tirava foto. Mas só apertava se tiravam foto… se não tinha fotógrafo, ele nem chegava perto. Pra falar a verdade, eu não tinha nem coragem de provar a comida que ele dava… nem mesmo meu cachorro comia aquilo. Mas também, político é assim mesmo… apertam a mão dos pobres antes da eleição e dos ricos depois…
Para mim, prefeitos bons são os que constroem viadutos para as pessoas morarem e não os que dão comida para miseráveis. Porque, por bem ou por mal, a gente tá acostumado a se virar. A comida do lixo dos ricos é muito melhor do que a comida que eles trazem para a gente na época de eleição. A comida que eles trazem não vale nada! Não tem gosto e é muito fedorenta. Depois, não dá para ficar aqui nem para dormir… o cheiro fica insuportável. A gente pode morrer intoxicado só pelo cheiro!
Eu estou falando demais? Eu não era de falar tanto, antes… depois fui ficando mais solitário e agora dei para falar desse jeito. Tanto que às vezes nem meu cachorro aguenta. Ele não reclama muito, mas vai dar umas voltas quando está cansado de me ouvir. No final ele sempre volta, mas tenho medo. Medo que ele resolva sair para comprar cigarro… porque vocês sabem, né gente? Quando alguém sai para comprar cigarro, nem sempre volta.
Na escola, a professora sempre dizia: “Vocês são o futuro da nação. Precisam aprender a falar e escrever direito”. Eu não conseguia falar o que eu sentia. Tentava, tentava, tentava… mas ninguém ouvia o que eu dizia. Eu queria falar o que estava sentindo, mas não sabia como! Ninguém me ensinou isso. A gente ficava lá fazendo aquelas contas sem fim, que eu nunca consegui decorar. Ninguém me ensinava a conversar, a expor meus sentimentos. Isso eu aprendi bem mais tarde. As contas? Eu contava nos dedos. E desenhava. Passava o dia desenhando e pintando. Ah, como era inútil! Pintava o céu de azul. Todo dia. Céu azul, terra marrom, grama verde! Céu azul, terra marrom, grama verde… céu azul, terra marrom, grama verde.
Um dia eu pintei o céu de cinza e o chão de cinza. Foi no dia que aprendi a pintar o que estava sentindo. Mostrei meu trabalho, todo orgulhoso, para a professora. Eu sabia que ela também iria ficar orgulhosa de mim. Mas foi o contrário. Ela ficou furiosa.
– Onde já se viu grama cinza? Pinta direito isso, já!
Eu ia dizer que não era grama, e sim, cimento… calçada de cimento. Mas ela deixava? Não parava para me ouvir! Eu só conseguia gaguejar:
– Mas… mas… mas… professora…
– Pinta já, estou mandando! Querem que as pessoas pensem que eu não ensino nada direito? Quer passar por cima da minha autoridade? Tenho anos de experiência, ouviu? Acha que sabe mais do que eu, é? Eu fiz 10 anos de faculdade, fiz especializaçã! Depois vem qualquer bostinha me dizer como é que se pinta um desenho! Já não basta os pais de vocês querendo me ensinar a fazer meu próprio trabalho? Já não basta o setor pedagógico querendo me ensinar como fazer meu próprio trabalho? Todo mundo quer meter o bedelho aqui! Até o diretor anda querendo mudar minhas aulas! Onde já se viu? Ele nem meia usa! Onde já se viu alguém que não usa meia, saber ensinar?
– Mas… mas… mas…
Me mandou para a sala do diretor, por indisciplina. O diretor não sabia nada de ensino, como pude perceber pela ausência de meias.
– Senta aí, moleque.
– Sim, senhor.
– A professora é sua segunda mãe, você sabia?
Fiquei perplexo. Essa informação era novidade para mim!
– Mas a gente chama ela de tia!
– O que é isso, moleque? Que indisciplina é essa? Mais respeito, viu?
Já notaram que estão sempre arranjando parente para a gente?
Colégio é legal, mas tem que respeitar o professor. Tem que fazer exatamente o que o professor mandar, senão…
Uma vez um professor me bateu. Ele sempre dizia:
– Quem erra as contas não vale nada!
Ele achava importante fazer os cálculos certinho. Eu sabia fazer a equação até de olhos fechados. Sabia seno, cosseno, cossecante hiperbólico, transposição de matriz, cálculo diferencial, integral… até cálculo renal eu sabia. Mas na hora de fazer as continhas… sempre me enganava. E o velho professor vinha de dedo em pé:
– Quem erra as contas não vale nada!
Eu fazia, refazia e fazia tudo de novo, e no final, recebia sempre nota baixa. Eu estava quase desistindo da escola quando descobri que ele havia se enganado na soma das minhas notas. Ele não pediu desculpas nem nada… só falou que era um pequeno engano. Mas eu disse:
– Quem erra as contas não vale nada!
Apanhei bastante… mas valeu a pena!
A diretora da escola, depois de alguns dias conversando com todo mundo, me chamou para conversar. Sentamos eu e o professor, lado a lado, em silêncio.
– Esse caso é muito grave. Não podemos permitir esse tipo de violência em nossa instituição. Temos uma tradição de ensino que precisa ser preservada! A diretoria já decidiu por unanimidade e todos apoiam a decisão que será tomada. A única decisão possível é a expulsão.
Eu ainda disse baixinho:
– Só por causa de um momento de fraqueza?
Pensei ainda, comigo mesmo:
– Coitado… vão expulsar o velho professor!
Quem vocês pensam que foi expulso? Pensam que foi ele? Pensam? Vocês pensam? Alguém aqui pensa? Professores… eu até entendo o lado deles. O diretor chama e diz:
– Faz assim, desse jeito! Faz como eu digo, foi assim que eu aprendi!
– Ah, então é por isso!
Eu não teria coragem de botar nessa escola nem o meu cachorro.
Estão sempre arranjando parente para a gente? Por que será, não é?
Teve um candidato que embestou que era meu pai! Ora… onde já se viu uma coisa dessas? E eu ia lá ser filho de político? Eles vinham e diziam:
– Esse homem é o pai dos descalçados!
Já apareceu por aqui pai dos pobres, pai dos descamisados, pai dos sem-teto, pai dos descalçados… está cheio de político querendo ser pai.
Teve um que levou nossa roupa e distribuiu umas camisetas escritas: “Fulano de tal, pai dos desamparados”. Eu falei que estava escrito errado, mas mandaram eu calar a boca e sorrir para a foto.
– Posso pegar minha camisa de volta? É uma amarela.
Minha camisa da seleção era muito melhor que aquela porcaria que estavam nos dando.
– Já está no caminhão. Vamos queimar tudo.
– Mas eu devolvo a camisa de vocês!
– Tá reclamando de quê? Ganha roupa nova e fica fazendo charme? Tem mais é que continuar pobre mesmo!
Com esse nem tentei dialogar… gente assim não dá pra conversar. Eles tem muita educação, um nível social elevado… sabe como é, eles vão logo batendo. Aliás, esse cara era muito forte para ter um diálogo, então, peguei minha camisa de um bolo de trapos. E o que ele dez? Pegou a outra ponta. Ele puxava e eu puxava, e a camisa ia alargando. Um pouquinho mais e a camiseta ia dar para nós dois. O pior é que o homem não estava achando graça e acabou chamando uns amigos. Amigos dele, porque meus eu sei que não eram. Saí correndo. O problema foram os sapatos novos, pois eu não estava acostumado com eles. Os homens correram atrás de mim, me alcançaram, me bateram – felizmente pouco – e me jogaram de um barranco. Rolei, rolei e rolei… vim rolando até chegar aqui embaixo.
Bem, aqui é bom. Eu e meu cachorro gostamos muito. Aqui não tem gente, e, de vez em quando, jogam um lixo com comida de rico. Mas, com certeza, um viaduto é muito melhor. Tem lugar que é muito ruim e tem lugar que é melhor…
Ruim mesmo é cadeia. Quer dizer… ruim não é, mas não deixam a gente sair, nem ter cachorro. Mas tem comida e bebida. Enfim, não tinha cachorro, mas tinha uma Ursa e um Coiote. Já contei isso?
O coiote queria que eu fosse a mulher dele. A ursa queria que eu fosse o marido dela. Brigavam tanto…
– Calma, calma, não briguem!
Não adiantou nada… ninguém me escuta! Eles brigavam tanto que acabaram se matando. Bem na minha frente! A ursa abraçou o coiote. O coiote abraçou a ursa. Ficaram rolando para um lado e para o outro, a noite toda. E eu só olhando. Rolaram e rolaram… e eu pensando “cadeia é bom, mas eu não quero ficar rolando de um lado para outro… além de tirarem minha liberdade, vou ter de ficar o resto da vida rolando sem parar”. Acabei dormindo um pouco. Quando acordei eles estavam ali, mortinhos, na minha frente. Um matou o outro e o outro matou um. E ambos morreram – claro.
O pior é que tinha muita gente olhando. Os presos e os guardas acharam que tinha sido eu! Olharam os mortos ali, na minha frente, e eu dormindo. Sei lá… vai ver que acharam que eu era sonâmbulo. Só sei que começaram a me encher de presentes. Revista, bala, doce, papelzinho branco, envelope com dinheiro, armas, faca, revólver, metralhadora… eu fiquei com uma pilha de charuto e cigarro desse tamanho! Me tratavam como se eu fosse o dono da prisão. Até os guardas me respeitavam. Faziam tudo para mim: limpavam minha cela, lavavam minha roupa, tudo. Só faltava me lamberem!
Eu estava com saudades do meu cachorro, mas não podia me queixar. Até uma camisa da seleção eles me deram! Aquela que eu falei antes, lembram? Pois é… poderoso! Eu era tão importante que um advogado veio e me soltou da cadeia! O mesmo advogado que me mandou pra cadeia por ter roubado uma camisa da seleção. Dá para entender essa gente?
Lembro direitinho do julgamento… eu estava muito nervoso e não entendia muito bem. Tinha um juiz muito bonzinho, que falava macio. Mas o outro cara, o promotor, dizia:
– Meritíssimo! Não se trata de um simples caso de roubo de comida. Não se trata de um simples caso de desigualdade social. O roubo de um alimento até poderia ser reconsiderado sob os olhos da justiça social, mas que justificativa poderemos encontrar para o roubo de uma camisa? Uma camisa da seleção não passará jamais de um crime fútil! A situação social não tem nenhuma ligação com esse caso. Não há como ser atenuante para esse ato criminoso, como sugere o meu ilustre colega. O advogado da defesa está tentando usar de subterfúgios para esconder a índole criminosa de seu cliente!
O tal que me defendia, o advogado da defesa, se vestia tão bem, era tão bonito, alinhado, bacana…
Ele dizia para mim quando eu tinha que me levantar, quando eu tinha que sentar e o que eu tinha que dizer:
– Levanta! Senta! Levanta! Senta! Diz “culpado”!
Até para cutucar por baixo da mesa ele era elegante… como falava bonito aquele homem! Mas tudo uma bosta, porque não adiantou nada. E ainda no final ouvi ele combinando um café com o outro, enquanto dois guardas me levavam preso. O que eu queria era explicar porque eu tinha pego a camisa, mas ninguém quis me ouvir! Não deixaram! Meu advogado dizia:
– Calma, calma, pode deixar tudo comigo. Eu já estou acostumado a defender gente como você…
Fiquei até imaginando, enquanto me arrastavam, se ele não tinha esquecido de dizer que era como um irmão para mim.
Bom, eu consegui sair da cadeia sem ter fugido, o que é muito bom. Já no hospício, não foi tão fácil. Lá é que era realmente ruim… e isso foi muito antes da cadeia. Já contei para vocês? Vamos lá…
Eles me deram uma caneca de metal, e, como não tinha nada para fazer, eu ficava batendo com a caneca nas grades o dia todo… be-le-lém, belelém!
No geral era ruim, mas tinha algumas coisas boas por lá. Sempre acontecem coisas boas, até nos piores lugares…
Tinha um moço de avental branco, muito bonzinho, que me levava para uma sala e ficava conversando comigo por uma hora. Coitadinho do moço… cheio de problemas de cabeça! E, acredite ou não, eu também tive aulas de Informática. Isso mesmo! Sou formado em Tecnologia de Processamento de Dados! As aulas aconteciam uma vez a cada 15 dias, e por isso, levei uns 3 anos para terminar o curso.
Terceirização é uma merda! Fui colega do Bill Gates… e do Napoleão Bonaparte. O Bill não valia nada, mas o Napoleão sabia programar direitinho. A gente ficava escondido na sala do diretor e esperava o horário de dormir do guarda-noturno. Sabe, os computadores que a gente usava durante o curso eram uma porcaria, mas na sala do diretor, tinha um novinho, muito bom, cheio de luzinhas. Ele não sabia mexer direito, claro, mas já viu algum diretor que saiba usar algum aparelho?
Usávamos tanto o computador do diretor que um dia nos descobriram. E do modo mais estanho. Estávamos usando o computador e dormimos… bem na poltrona do diretor! Aí foi o início-da-picada. Injeção todos os dias… foi horrível! Todos os dias o diretor vinha perguntar se a gente sabia de alguma coisa.
– Sei de várias coisas!
Não sei o que o diretor achava que a gente sabia, mas o Napoleão sumiu… nunca mais vi. Mas continuaram a aplicar as injeções em mim. Todo dia! Injeção no braço, injeção na perna, injeção na cabeça, injeção na bunda. Sabe… tem gente que não gosta de levar na bunda, mas é porque nunca levaram na cabeça.
E um dia eu fugi. Esperei o guarda-noturno dormir… roncar. Ele sempre dormia lá pelo mesmo horário, mas naquele dia ele atrasou. Eu estava meio tonto de tanto levar injeção, mas felizmente elas não faziam mais o mesmo efeito. Eu sei que não era certo fugir, mas eu estava ficando todo furado!
Voltei para as ruas, bem perto de onde a polícia tinha pego a gente na primeira vez. Naquela época, a polícia não colocava a gente na cadeia… eles apenas batiam um pouco e nos levavam direto para o hospício. Eles pensavam que viver na rua era coisa de louco! Quando eu saí do hospício, a coisa já estava diferente. Mas foi um tempo melhor do que é agora. Hoje, eles não prendem mais na cadeia. Ninguém sabe onde eles prendem, pois ninguém voltou para contar ainda.
A cidade estava toda diferente. Tinha até shopping! Fiquei muito tempo nas ruas, sabe? Um dia eu estava passando na frente de uma loja e tinha um cartaz escrito: “leve três e pague dois”. Era uma oferta de camisas da seleção. Mas quem iria comprar três camisas da seleção? Algum tarado?
Nessa, eu fiquei pensando, com o pouco de matemática que eu tinha aprendido:
– Se eu levo três e pago dois, então eu posso levar dois e pagar um? Será que eu posso levar um e pagar zero?
Mas não deixaram nem eu perguntar… o moço da loja, que andava assim, mancando com a perna direita, chamou um outro, fortão, que andava assim, mancando com a perna esquerda. Cada um me pegou por um braço e me levaram para um quarto nos fundos. Fiquei um dia inteiro lá. Quando a polícia me jogou numa delegacia, por sorte, um homem dos direitos humanos me soltou e disse:
– Eles não podem fazer isso! Você foi mantido em cárcere privado… isso é crime, é sequestro. Não se preocupe, vou providenciar tudo para você.
Não me preocupei, mas depois disso, o homem nunca mais voltou. Uma vez vi ele na TV. Era deputado, e depois senador, mas logo ele andou se enrolando com umas verbas e o partido dele achou melhor colocá-lo em um lugar menos complicado. No fim ele se tornou secretário de segurança.
Ele apertou a minha mão naquele dia… eles gostam de apertar a mão e tirar foto. Acho que dá sorte. Minha mão já transformou candidato em prefeito, governador, deputado… será que se eu apertar a minha própria mão eu também viro político?
– Ai, que medo…
Alguém aí sabe do meu cachorro? Ele é grande, assim, anda dessa maneira e faz xixi desse jeito, sabe? Também tem duas orelhas. Olha, eu sei que cachorro geralmente tem duas orelhas, mas eu digo isso porque já conheci um cachorro que não tinha orelhas. Foi no canil da prefeitura, naquele onde um cantor de rock teve um encontro com a namorada, lembram?
Eu ia direto lá para pegar comida para os bichos. Eu sei que não é uma coisa certa… eu pegava a comida dos bichos e trocava pela comida que o governo dava para os pobres. Coitadinhos do cachorrinhos! Agora, tenho pena deles. Morreram tantos!
E lá tinha um cachorro sem orelhas. Ele escutava tudo, mas não tinha uma orelha! E tem gente que possui orelhas e não escuta nada… mas esse animal era o contrário. Soltei os bichos todos, uma vez, mas eles não queriam fugir. Tem bicho que é assim mesmo… a gente dá liberdade para eles e eles não sabem agradecer. Ficam lá, feito uns patetas, esperando o destino. Até falei com eles, dei instrução, orientação política, amor e carinho… nem batendo adiantou. Como líder político de cachorro, eu não me saí grande coisa. Mas tem algum líder político que seja?
Esse cachorro tinha perdido a orelha por causa de um erro médico, acreditam? Era um cachorro fino, fiel, obediente, de dono rico. O dono estalava os dedos e lá vinha o animal – o cachorro – abanando o rabinho. Mas parece que o dono, que morava sozinho, teve um treco e morreu… não deixou apólice, testamento, plano de saúde… nada. Imaginem a situação: num dia, tem-se casa, três refeições diárias, banho semanal, tosa mensal, veterinário, butique, perfume, e, no outro, a dura realidade da vida nas ruas! Não sabem como é horrível essa vida de cachorro! O pobre animal não resistiu e tentou se atirar na frente de um carro. Lá vem vindo o carro e o animal pula… o carro trava, derrapa, desvia e vai embora. E o animal não sofre nenhum arranhão…
Mas esperem…
– Cuidado, uma bicicleta!
Pobre bichinho… levaram ele para o canil. Estava machucado, mas não seriamente. Apenas uma orelha precisava ser amputada. Mas vocês já conhecem o final dessa história. Sabem como é, serviço público… amputaram a orelha errada e ele perdeu as duas.
Olha, cachorro sem orelha é raro, mas cachorro sem rabo tem bastante. Mas para que serve o rabo de um cachorro afinal? Sempre corre o risco de deixar o rabo preso. E quanto mais abana o rabo, mais perigoso é. Sacode para cá, sacode para lá, e um dia, quando menos se espera, pode ficar com o rabo preso. Melhor ter o rabo curto, né?
Rabo não ajuda nada na hora de nadar, também. Meu cachorro não sabia nadar, então eu tive de ensinar para ele. Uma vez, quando a gente estava morando embaixo de uma ponte, teve uma enchente aqui. A água subiu tanto que tivemos que sair nadando. Um bando de gente estava salvando as pessoas… era bombeiro, polícia, comunidade… atiraram uma corda, mas cachorro não sabe subir em corda! Será que já tentaram ensinar um cachorro a subir numa corda? Meu cachorro saiu nadando, mas eu não tive sorte e fui salvo pelos bombeiros. Estavam levando os flagelados para um abrigo. E estava cheio de gente lá! Era um ginásio esportivo enorme. Eu falei que não queria ficar, que não praticava esportes, mas ninguém queria me ouvir. Não me deixavam sair. Tinham orelhas, mas não me ouviam. Tive que ficar.
As famílias que tinham perdido as casas na enchente recebiam ajuda de todo mundo. Ficamos lá um tempão. Passou uma semana, duas, três… a enchente já tinha passado, mas a gente continuava lá dentro. A imprensa vinha e tirava fotografia, filmava.
– Façam cara de flagelados! Mais triste!
Sempre estavam mandando comida para nós. Faziam até um show para arrecadar dinheiro e tudo o mais… mas nunca nos convidaram para um showzinho. Comida tinha bastante! Nunca comi tanta bolacha. Roupa velha também tinha muita. Aliás, nunca vi tanta roupa velha. Não sei de onde tiraram essa quantidade! Deve existir alguma fábrica de roupa velha em algum lugar, só pode. Já fabricam as roupas rasgadas no fundilho ou no sovaco.
Como eu não tinha nada para fazer, ficava brincando com as crianças. Não sei de onde saia tanta criança também. Quer dizer, eu sei de onde saem… até ajudei a fazer um parto lá no ginásio. O que eu quis dizer foi que não sei como tem tanta criança no mundo!
Uma certa noite tinha uma mulher gemendo… e eu fui lá, ajudar. Chamaram uma ambulância, mas ninguém sabia o que fazer enquanto os médicos não chegavam. Lá estava eu, fazendo um parto. Situação complicada… uma mulher se contorcendo de dor e eu gritando:
– Sai daí, moleque, vem pra fora!
Pensam que o menino me ouvia? Pensam? Não! Ficava lá dentro, no quentinho, no bem-bom… nada de querer sair. E eu acalmava a mulher:
– Calma, já assisti muito parto de cachorra!
Mas ela não se acalmava. Eu não sabia se enfiava a mão e puxava ou se esperava a barriga. As pessoas ficavam olhando ao redor e não faziam nada. Nem palpite davam… eram umas abestadas. Finalmente o bichinho botou a cabeça para fora, para dar uma espiada… daí, de novo, eu não sabia se puxava a cabeça ou se apertava a barriga da mulher…
Ai, que aflição! Por isso é que eu prefiro os cachorros… tudo mais eficiente.
A mulher continuava urrando de dor, mas a criança era bem espertinha e já vinha saindo:
– Calma, calma, tudo vai dar certo… o pior que pode acontecer é nascer morto ou você morrer por falta de médico!
Eu já estava com vontade de desistir e enfiar a criança de volta, mas não podia deixar o serviço pela metade, não é? Ia ficar muito incômodo andar por aí com metade da cria pendurada para fora e outra metade para dentro. Sem contar nos inconvenientes… como ia fazer para sentar?
– Vamos, moleque, sai logo daí! Empurra, mulher!
Ô menino teimoso! Demorou para sair. Só saiu quando os médicos estavam chegando. Quando os médicos chegaram, ela fez uma força extra e… plop! Saiu o bichinho. Os médicos tomaram conta de tudo, mas a mãe ficou agradecida demais. Queria até que eu fosse o pai da criança. De novo essa história de inventarem parentes para a gente…
A vida no abrigo estava ficando muito chata… as pessoas começaram a voltar para seus trabalhos e, mesmo os que não tinham casa, precisavam trabalhar. Começaram então a deixar as crianças para que eu cuidasse. No início, eram só as crianças grandes. Era fácil… eu ficava o dia todo correndo com elas dentro do ginásio, de um lado para outro. Mas depois começaram a me deixar as crianças pequenas também… uma, duas, três. Então ficou tudo muito complicado. Troca fralda, limpa, dá comida. Tudo ao mesmo tempo. E na hora de amamentar? Todas famintas… faltava teta para tanta boca. E eu fui ficando magro, magro…
Finalmente todos foram embora, mesmo sem casa, e eu pude voltar para o meu cachorro. Ele estava lá, me esperando. Não me abraçou, nem me sorriu latindo, mas senti que ele estava feliz com a minha volta! Ele não tinha ficado sozinho esse tempo todo não. Fiquei sabendo que teve um caso com uma cadela, mas foi algo superficial, nada importante. A culpa foi minha… fiquei longe mais de um ano e nem um telefonema eu dei! Sabe, a comunicação é muito importante num relacionamento. Não dá para conviver com alguém sem diálogo.
Ah, por falar em diálogo… vocês conhecem a história do tigre? Aquela peça de teatro… não contei para vocês?
Eu estava lá em cima, apresentando uma peça de teatro, na época em que eu acreditava nas artes. Todo mundo estava me elogiando, pronto para me darem um prêmio, um auxílio para me apresentar em público. Daí, do nada, surgiu uma mulher poderosa, cheia de razão, dizendo que a minha peça não tinha a conotação política correta. Entenderam isso? Nem eu… mas veio outro homem e completou:
– Monólogo? Monólogo… isso não é arte.
Cai sentado. Não deu nem para gaguejar. E o dono do texto, para complicar, ainda me pediu um milhão de dólares para apresentar a peça dele… você conhecem? Aquele italiano que fingia que era socialista e ganhou o prêmio Nobel. Como era o nome dele? Um milhão… coitado. Se ele soubesse que aqui nesse país o texto dele nem é considerado arte, talvez até me desse um desconto.
Bom, deixa eu continuar… preciso achar meu cachorro. Eu gosto muito de cachorrinhos. Políticos, professores, diretores… nenhum vale o que vale um cachorro. Sabem porque os cachorros são bichinhos de confiança?
– Porque não tentam fingir o tempo todo que são gente.
© Victor M. Sant’Anna 2002
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