Introdução
O personagem começa a cena sentado à beira de um enorme buraco no centro do palco. Ele vai contracenar o tempo todo com este único objeto: a ausência de um chão. Ao redor do buraco, encontra-se alguns artigos como uma corda (para subir, escapar ou pairar perigosamente sobre o abismo) ou uma cadeira (para ficar ali, descansado, olhando para o buraco), e ainda, pás e areia – que permitiriam que ele cobrisse o buraco. O personagem brinca o tempo todo com as possibilidades que ele tem enquanto fala do passado, de quando ali, naquele lugar, ele teve a melhor das vidas, até que um dia, ao acordar, topou com aquela “singularidade”: a pessoa que ele amava, Jan, foi embora após 10 anos de convívio, deixando apenas aquele enorme vazio.
“O Buraco” Ou “Eu Odeio Fígado”
Ah, ótimo!
Mas por que esse cara não deixa nada sem comentário? Sem marcas e remarcas? Eu poderia ter ficado muito mais feliz sem ter de comentar o buraco que apareceu aqui. Um dia acordei e minha vida tinha mudado: não havia o mesmo chão. Por que eu não deixo intacta a paisagem por onde passo? Por que não limpo qualquer vestígio de minha trajetória pelos caminhos-tão-bonitinhos-que-pedem-que-não-os-toquemos-para-que-não-deixem-de-ter-encantos? Se eu não falasse desse buraco, ninguém saberia sequer que ele existiu. Algum amigo perdido, sem saber, perguntaria um dia:
– Como Jan está?
E eu responderia:
– Foi embora. Levou tudo o que eu tinha, tudo o que eu quis, tudo o que eu pensei que era a minha vida: casa, família, tudo.
Mas deixou algo. O maior brinquedo que eu tenho para me distrair agora: um enorme abismo. É um buraco enorme em minha vida, de onde eu não consigo me afastar!
Por que não atravesso o abismo como atravesso a rua? Por que fico distraído com seu tamanho e profundidade? Por que olho para os dois lados, depois de ultrapassar a ponte improvisada sobre o abismo, e volto, repassando tudo outra vez, enchendo de pegadas a fina camada de poeira que cobria a ponte? Por que eu vejo, revejo, como, vomito, remendo e estrago tudo?
Por que não podemos deixar o abismo como foi encontrado, deixar a destruição como está, deixar o profundo sem iluminação?
Por que vasculho ao redor em busca dos pequenos enfeites espalhados pela beira da existência? Por que interajo com os barrancos do abismo? Por que o abismo é como uma coceira incômoda que não conseguimos parar de coçar?
Pois é, terminei mal… Agora somos quase todos velhos. Envelhecemos. Muito. Como já estou na velhice há muito mais tempo – desde dezembro de um ano qualquer – posso garantir que tudo vai piorar. No dia seguinte ao meu abismo, quando Jan foi embora e deixou esse vácuo gigantesco, a legião de mulheres que costumavam me acompanhar em orgias de meus pensamentos abandonou minha imaginação, sem muitas desculpas. Meu cabelo caiu às centenas, uma obturação caiu e depois outros males piores à boca vieram. Por já estar na idade errada, meu dentista disse que não valia a pena tratar disso. Buracos… a vida é feita de buracos, uns pequenos, outros grandes. Noutras partes a devastação prossegue, e o médico me dá remédios cada vez mais caros e que logo curam menos. As dores são maiores e os amigos mais distantes.
Ah, mas tudo tem seu lado positivo, claro. Bom, a memória me falha agora, mas tenho quase certeza que tinha algo bom guardado para esse momento.
A vida começa num buraco. Não há nada que um sexo ofereça ao outro que não uma variação de buracos gostosos, quentes, alucinantes, molhados – alguns em locais distantes, não alcançáveis, e outros ali, na ponta dos dedos, ao alcance da mão, da língua, do nariz, do queixo, do umbigo, do pé, cotovelo, sei lá… nem sei do que estou falando.
Para mim, falar sobre si mesmo é como tirar a roupa: é quase uma violência…
É difícil tirar a roupa na frente de um amigo, de um novo amor ou do médico. Isso sempre precisa de tempo, de amadurecimento, de vontade e de necessidade.
Ao usarmos metáforas, textos e poesia para nos comunicar, estamos “contornando” o problema: expondo sem tirar (totalmente) a roupa, desnudando mas mantendo vestes semi-transparentes sobre nós, que nos mostra sem que nos vejam. A luz fraca, a semi-escuridão, o translúcido nos ajuda ainda mais nessa auto-proteção.
Não é fácil subir numa mesa e fazer strip-tease, mesmo por uma louca paixão; nem necessário, talvez. Só o tempo e a intimidade permitem isso.
Embora a nudez diante de um amigo tenha o mesmo caráter de uma nudez diante de um médico, isso não diminui a transgressão do fato. E nem eu gostaria de uma coisas dessas… quero amar um amigo acima disso e não precisar jamais que isso aconteça, mas que, se acontecer, não haja embaraço.
Metáforas… eu odeio fígado… odeio fígado mesmo. Acho que a vida é como um fígado. Algumas pessoas adoram, outras detestam… as pessoas nascem odiando-o ou adorando-o. É uma questão de sorte ou azar.
Jan odiava fígado também… mas um dia, com vergonha de recusar o prato, comeu fígado em um almoço na casa de conhecidos. Que nojo!
Monteiro Lobato tem um conto em que um personagem odeia fígado. Eu adoro Monteiro Lobato por isso.
O personagem dele participa de um banquete no qual o prato principal é fígado. Ele tem de engolir aquilo, afinal, trata-se de uma cidade pequena. Ele simplesmente não teve a coragem de dizer não. Começa dividindo a carne em dois pedaços e logo os engole, para não ter de sentir o gosto. A dona da casa, pensando que ele havia gostado muito, o serve outra vez. Incapaz de repetir a façanha, ele esconde o fígado no bolso. Tudo bem, até agora. Porém, ele esquece do pedaço de carne em seu bolso até a hora em que, ao declamar alguns versos, o suor lhe vem à testa. Então, ele puxa o lenço do bolso, fazendo o bife voar de seu esconderijo. O personagem foge da cidade, cheio de vergonha e com a terrível fama de adorar tanto fígado que era incapaz de comer sem também esconder alguns nacos da iguaria no bolso.
A vida é assim… algumas pessoas preferem engolir o fígado que oferecem pra elas. Outras, escondem no bolso. Algumas fazem as duas coisas.
A vida é um fígado. Ou um buraco? Bom, na minha vida tem um grande buraco. Um bolso é um buraco, não é?
Uma boca é um buraco. Tudo começa com um beijo, certo?
E todos nascemos 9 meses depois, saindo de um buraco. Buracão!
Não sei se o que eu faço aqui é arte ou ciência. Não estou estudando buracos. Estou me aprimorando na arte de conviver com um. Este!
Ah, toquei num ponto interessante… ao falar de arte e ciência, esqueci de dizer que vivemos na cultura do culto ao buraco. Nem percebemos, já é universal. É histórico. Tem raiz. A “história” tem maior importância em relação a todas as tendências culturais e artísticas, que também tem um relacionamento com a ciência. Tudo está relacionado com tudo. Estou aqui, pertinho… olhando, vendo o que posso fazer. Quem sabe viro um grande herói, a pessoa mais importante da história. Talvez, aquele que descobriu como conviver pacificamente com os buracos.
Sou bastante sensível ao que acontece, embora eu adore assistir futebol americano pela TV e gritar por cada ponto conquistado. Sou bastante sensível para certas coisas. Tenho um olhar “diferente” da maioria das pessoas, uma percepção diferente. Mas isso não é bom. A tendência das pessoas, apesar de – quase sempre – reclamarem da insensibilidade humana, é perceber tal sensibilidade como fraqueza, não como qualidade. Na “hora H” parece que o que conta mais é ser um idiota. O que conta é ser parecido com as pessoas de comportamento que eu mantenho distância.
Jan, no início, se admirava diante destas qualidades. Mas na hora da separação, final de casamento de 10 anos, isso foi, na visão de Jan, um peso… uma “fraqueza”, algo que eu não deveria ter. Pelo menos foi o que Jan deu a entender.
Por aqui, o fato de ser separado ou não nunca foi importante pelo ponto-de-vista institucional: fiquei casado 10 anos, mas nunca “legalmente” casado. Sempre fomos diferentes quanto a isso, sobre não importarmos com as regras “dos outros”. Mas é justamente por termos tanta afinidade que a separação é um peso… é difícil entender como duas pessoas que se dão tão bem precisem ficar separados para ficar bem. Acho que a escolha de Jan estava certa. É triste, mas… casamentos, por melhor que sejam, não durarão para sempre.
Mas é isso… vamos começar tudo de novo. Ter coisas para fazer, coisas para cuidar. Parece que está sendo bom para mim. Se eu soubesse que seria assim, teria morado sozinho mais cedo. Perdi muito tempo “sem vontade” de enfrentar isso. Preferi ficar um ano jogado pelo mundo. Saí por aí, para ficar algumas semanas fora, e acabei ficando um ano sem estar em nenhum lugar. Depois vim para cá, mesmo com o abismo exposto desde a minha separação. Mais um ano parado!
Acho que cada um procura as soluções pelo seu jeito. Essas coisas traumáticas não têm fórmula… são difíceis de atravessar.
Lembrei de uma outra história de fígado. É sobre Prometeu, que foi acorrentado depois de roubar o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens. Na mitologia, a punição de Prometeu foi ser acorrentado e ter seu fígado comido diariamente por uma ave eternamente, com o fígado a se regenerar continuamente. Na minha visão, não é Prometeu quem recebe a grande punição, e sim, a ave, que, não tendo nada a ver com o crime, recebe o castigo de comer fígado pela eternidade.
Têm coisas piores do que fígado?
Bem, têm coisas piores do que a solidão: a separação!
Gostar de alguém e ser deixado quando a relação entre os dois é forte, ou, pelo menos, ainda o é para o que foi deixado, como meu caso, é pesado, muito difícil de aguentar. Acho que o trabalho é um fardo. É não sentir um apoio, aquele fato de voltar pra casa e encontrar, ou ainda esperar alguém. Mas por outro lado, ajuda a distrair os sentimentos, a sensação de pedaços faltando.
Lembranças. Também tenho guardado tudo o que posso da Jan. Foram 10 anos perfeitos, impossível aceitar que um dia tivesse de acabar. Acho que é uma coisa que eu nunca vou entender… como alguém que você conhece pode ter uma visão tão diferente dos mesmos fatos? Mas tudo bem, acho que faz parte. Porém, foi um amor tão especial, tão cheio de felicidade… tenho a sensação de que jamais encontrarei outra pessoa como Jan. Mesmo que eu volte a ser feliz, acho que jamais encontrarei alguém que me complete como Jan.
Ás vezes, penso em estudar outros buracos. Tenho muitas barreiras para falar e escrever sobre eles, embora veja os buracos como termos técnicos, sem o menor problema. Consigo entender razoavelmente bem. Mas, sei lá, parece que não saio do lugar. Estudo um semestre, paro, volto a fazer o mesmo nível em outro buraco e assim vai… não tenho vontade de ficar noutros buracos, nas mesmas coisas. Agora, com toda essa tristeza, não quero estudar outro buraco mesmo. Mas talvez fosse uma boa coisa pra fazer.
Bom, é isso.
É difícil entender a vida.
Tenho amigos, tenho programas, saio para encontrar pessoas na mesma situação. Já há meses… nesta semana, uma dessas pessoas quis algum tipo de envolvimento. Ou, talvez, sondar a possibilidade. Eu, com muito cuidado, tentei explicar que não me sentia atraído, que não tinha nada a ver com ela… mas não fui muito feliz, pois ela acabou irritada e brigou comigo. É com essas pessoas que acabo tendo contatos mais freqüentes, pessoas que eu chamaria de “amigas”. São elas, ao mesmo tempo, que insistem que devo esquecer, que devo partir para outra, que ficar parado é pior. Foi por isso que acabei namorando por correspondência, participando de encontros às escuras com amigas de amigos…
Como algumas das pessoas que eu conheço estão fora do meu caminho, isso dificulta a possibilidade de encontros, de sair, de conhecer “de verdade”. Na prática, não está dando certo… continuo a preferir estudar buracos e trocar informações sobre isso com outras pessoas, ao invés de sair com elas. Fico dividido. Alguma coisa me impele a procurar companhia, mas outra força me leva sempre a arranjar motivos para ficar aqui, para não me envolver, para evitar contatos “reais”. Não sei se vou vencer essa barreira, atravessar esse abismo, mas acho que o contato com outras pessoas tem me feito pensar mais no assunto. Se, um dia, uma dessas forças vai vencer dentro de mim, é difícil definir ainda.
Acho que o caminho à beira do abismo é longo e espinhento, cheio de voltas e reviravoltas. Por isso teimo em carregar minhas coisas, mas só para casos de emergência… lanterna, corda, sapato com pregos. Espero que esta terapia dê resultados um dia.
Apesar de estar separado há mais de um ano e ter dificuldades em esquecer o trauma, está sendo difícil “voltar ao normal”. Ninguém quer ficar sozinho, mas alguns, tais como eu, quando estão neste meu estado, podem achar tudo sem graça, não tendo a vontade ter algum tipo de relacionamento. Olha, já tentei pegar uma pá e jogar terra sobre o assunto. Depois, joguei mais terra e mais e mais e mais. Não fez a menor diferença… esse buraco não tem fundo. Nunca, mas nunca mesmo, ele vai estar coberto.
Não estou misturando esse sentimento de saber que é impossível terminar com esse abismo com minha vontade. Tenho a consciência de que não posso ficar assim pra sempre. Por isso tenho a tentativa de conhecer novas pessoas, embora sem intenção de um relacionamento maior do que estudo de buracos, a princípio. Ser feliz não é um objetivo claro. Em alguns momentos, parece que tanto faz o que vir a acontecer. Depois, como neste instante, as coisas mudam e fico achando que devo tomar alguma atitude… e assim vai, oscilando entre um e outro estado. Às vezes atravesso o abismo… mas olho para trás e o abismo continua lá, e eu ainda estou na beira dele, na necessidade de atravessar para o outro lado. Não fez a menor diferença o trabalho de atravessar.
Pegar na enxada e na pá me fez lembrar o quanto acabo envolvido com o trabalho quando estou em período de pesquisa. Às vezes porque preciso, às vezes sem perceber. Tenho a tendência de ficar imerso no buraco e estar sempre procurando assuntos relativos a ele.
Começo a ver algumas vantagens em ficar sozinho, pequenas coisinhas que eu tinha deixado de fazer, por escolha própria. A maioria, por falar nisso. Agora posso voltar a incorporar meu jeito de ser. Ontem, por exemplo, saí para ver um jogo na televisão… é um avanço!
Tenho altos e baixos nessa “fase de recuperação”. Às vezes estou feliz de estar sozinho e às vezes me sinto vazio e sem vontade de fazer nada, bastante triste. Depois me recupero e assim vai. Faz parte do processo de tapar buracos, suponho.
Todos nós estamos atrás de uma paixão, mesmo quando não estamos, né? O problema é quando a paixão acaba… ou quando não sentimos mais vontade de procurar por uma.
Fico oscilando entre querer mudar minha vida e voltar à anterior. Tudo é sempre um grande problema… todas essas decisões, não conseguir saber o que é melhor para mim…
De qualquer forma, quando estou aqui, estou feliz ao máximo. No entanto, quando estou aqui, penso em ter companhia para fazer alguma coisa além do que ficar aqui.
Fico me sentindo no dever de decidir, mas, ao mesmo tempo, um medo de tomar iniciativas que me levem a caminhos definitivos. Que bobagem, né? É só um medo. Eu sei que posso dominar a situação se eu quiser, mas o medo, pequeno, está sempre lá. Tenho medo de ficar longe de minhas coisas, mas também tenho medo de ficar sozinho. E, mesmo percebendo que são medos imaginários, que tais coisas são incompatíveis, sei lá o que acontece… não consigo sair desse impasse.
Talvez a situação de separação não seja compatível com ser uma pessoa feliz, mas, fazer o quê? Não me parece que seja assim, mas, ao mesmo tempo, seria uma explicação para o que acontece dentro de mim. Indefinição.
Tem tantas coisas que poderiam ser mais simples se eu não precisasse pesar e pensar, refletir e medir… não consigo escapar disso. Ah, sei lá.
Já tive outros buracos em minha vida. A última vez foi há mais de doze anos, quando eu tinha sérios problemas e crises que me faziam pensar que a auto-destruição era a única saída. De alguma forma, ter cavado meu próprio buraco naquela época garantiu minha sobrevivência mais recente, após a separação. A separação foi o buraco mais profundo que eu já vi e, mesmo assim, nenhum pensamento ruim me passou pela cabeça. Nunca tentei pular lá dentro. Ah, pensei em me jogar lá dentro, acabar com tudo, sim. Mas não de maneira séria… se eu quisesse, teria feito isso. Foram em alguns dias meio ruins. Sinto que avanço – devagar, mas “em frente”.
Ontem eu estava escrevendo sobre buracos e me passou pela cabeça uma observação interessante. Era sobre eu passar uma ideia, para os outros, de que adoro o que eu faço. Verdade, às vezes eu nem noto, mas o trabalho de pesquisar as profundezas é muito divertido, apesar das cavernas terrivelmente quentes em que tenho trabalhado. Detesto ter de lidar com o calor. Sinto um prazer muito grande quando tenho um barranco que me faz chegar a novas descobertas. Acho que sou meio bobalhão… adoro pesquisar isso! Claro que o ideal é poder viver, também, mas numa relação entre explorador e abismo, ao invés de “achar” vida lá fora, o mais comum é re-encontrar aqui dentro algo para fazer.
Acho que vou tomar banho. Estou precisando, trabalhei muito hoje!
Com Jan, eu queria que fizéssemos tudo juntos. Mas infelizmente, Jan não queria… dizia que não precisava, que se eu é que estava arranjando coisas para fazer, eu é que tinha de procurar… chato, não é? Depois da separação ela foi fazer o que bem quis, sem a minha presença.
É, acho que preciso de um banho. Hoje marcava 41 graus no termômetro que eu coloquei lá em baixo, não dá para ver daqui. Uma vez, tive de trabalhar numa sauna… mas é ótimo estar lá embaixo, mesmo que eu fique desidratado. A sensação de falar para as paredes… às vezes falo com elas. Ora, algumas paredes são quentinhas e vale a pena encostar-se nelas. Acho que eu até gosto.
Isso é complicado mesmo… têm muitas coisas que aconteceram que me deixaram chateado nos últimos dias. Por mais que eu tivesse a habilidade de contornar os problemas, não dá pra dizer que tudo tenha ficado bem a ponto de tomar uma decisão tranquila sobre o meu futuro. Acho que preferi optar por esconder diante do desafio.
Por que paredes? A sensação de um afastamento é real… isso realmente aconteceu. Mas foi uma espécie de jogo de medos que sempre podem ser interpretados como uma “fuga”. É por causa de nossos pequenos “medos” que agimos de tal forma. Isso aconteceu, mas como um teste: eu tinha expectativas diversas que não foram atendidas na minha pesquisa aqui e isso foi gerando uma certa insegurança. Não pensem que a decisão de ficar aqui foi fácil. O medo batia o tempo todo. Por mais racional que eu tente ser, eu preciso dizer a mim mesmo o tempo todo: “é só uma visita, vai ficar tudo bem”. Repito isso muitas vezes sem parar, para disfarçar o pânico, para que talvez eu nunca mais volte. O que passa lá dentro e não podemos admitir é: será que eu vou sair? Será que eu vou rever a luz? Isso pode crescer e ficar maior do que podemos calcular.
Meu jeito é ficar neutro numa decisão. Sou racional e pareço frio nessas horas. Engano… a visão da parede que temos não chega perto da realidade. Somente o tato pode dar o verdadeiro conhecimento. Algumas paredes são quentinhas, mesmo que as aparências delas sejam de sombra e frio. Ser neutro tem a ver com ciência, não com frieza. Sei que as pessoas têm dificuldade para perceber que sou comum…
Ninguém conhece mais o valor das pequenas coisas do que eu… algumas até carrego comigo. Qualquer dia eu mostro pra vocês…
Sobre o meu casamento, só tenho a dizer que tentei de tudo: ser rebelde, ser paciente, ser eu mesmo, ser outra pessoa. O companheiro ideal na visão do outro nem sempre é aquilo que você é ao natural. Então o que sei é que se alguém não te ama mais, não adianta fazer das tripas um coração… não há mais nada a fazer. E não acredito nessa história que foi algo que eu fiz, ou deixei de fazer, que fez Jan deixar de gostar de mim. As pessoas podem deixar de gostar de alguém independentemente do que elas fazem ou não, porque, pelo outro lado, também é verdade que as pessoas podem te amar pelo que você faz ou não. Logo após a confusão ter se dissipado e Jan ter parado de pôr a culpa em mim por não sentir mais paixão, ela me disse, separando-se da minha vida:
– Eu sei que nunca vou encontrar alguém como você. Você foi perfeito, mas não consigo viver sem paixão. E eu não tenho mais paixão no meu corpo. Vou me arrepender de ficar longe de você. Não existe ninguém parecido, mas é melhor viver longe de alguém perfeito do que viver com ele sem existir uma paixão que justifique a convivência.
Isso justifica, segundo Jan, o fim de um casamento, mas não o fim de uma amizade. Para nos manter longe um do outro, Jan tem outros motivos. Ela me disse que não me quer por perto porque tem medo de não resistir ao meu carinho. Jan não me quer por perto sabendo que eu ainda tenho esses sentimentos todos. Jan ainda me quer bem e não me quer sofrendo, mas não pode fazer nada. Então, o abismo nos separou. Nem amigos poderemos ser, pois dificilmente vou deixar de amar Jan.
Não posso reclamar. Quando vejo casamentos em que cada parceiro reclama um do outro, acho que, desgraça por desgraça, a minha não é das piores. O que sempre busquei foi o reconhecimento de que eu estava fazendo o que podia… Jan reconhece isso. Então… é isso.
Ah, não sei nada mesmo.
Ah, tipo assim… todo mundo sabe que o Sócrates, filósofo grego, não deixou nada escrito. Mas há uma frase dele que alguém lembrou de deixar pra história que é: “tudo o que sei é que nada sei”.
Ou, se preferir a minha versão atualizada para os dias de hoje, já que não consigo copiar nada sem alterar um pouco: “Tudo o que sei, é que sei menos que o Sócrates”.
Deixaram a frase do homem intocada por 2500 anos e eu acabo de alterá-la… o mundo deve estar mesmo esquisito!
Mas tudo isso, era só pra dizer que não sei nada, não afirmo nada, não ponho a mão no fogo por nada e quem quiser acreditar, faça-o por sua própria conta e risco.
Gostar não quer dizer que não possamos analisar, esmiuçar, estudar, dissecar e destacar… bom, faço isso com pessoas, filmes, poesias. Acho que também posso fazer isso com os pontos que gosto e os que não gosto…
Acho que não fecharemos nenhum abismo, nunca… sempre que lembrarmos de algo, voltaremos a eles!
Eu fazia isso, às vezes: mergulhava em filmes… por alguns anos foi minha principal diversão! Mas, sei lá, o tempo passa, e sempre existirá o problema da impossibilidade de ler, ver e comer tudo. E isso é bem complicado!
Agora estou vendo pouca coisa, e não ter com quem comentar é muito ruim… buraco.
Quando a gente fica meio assim, meio sozinho, dá um vazio…
Ontem eu não estava bem… não por alguma causa específica. Eu só não estava bem… estava triste. Mas ninguém entende, acham que eu estou me fazendo de vítima, cavando meu próprio buraco.
Até quis sair… eu estava só piorando. Só queria um “oi”, ter alguma esperança, mas… estou aqui. Não comi direito o dia todo, eu não dormi nada de madrugada, dormi no meio do banho…
Estou cansado.
Lembro de uma briga. Eu precisava de carinho… talvez fosse a hora errada, sei lá.
Mas tudo bem. Fico ouvindo música aqui, então, fico melhor… estou bem. Quero que todo mundo fique bem também. Mesmo que ninguém me entenda, eu quero todo mundo bem e sempre vou querer bem…
Sinto falta de estar “ligado” a alguém… mesmo sem falar com as pessoas, saber que alguém está bem é tão bom. Sei lá.
A distância faz isso, acho. Então vem cá, fica pertinho de mim, me dá um colo, vai… tô precisando. Tô pedindo, não precisa me perdoar, não precisa me desculpar, só estou meio sozinho.
Sempre que começo a falar isso começo a chorar… por que será? Tô cansado de ser chorão, queria que isso já tivesse passado. Queria brigar com alguém e ficar furioso, não triste! Será que eu fico triste porque não brigo com ninguém ou não brigo porque estou triste?
Às vezes vejo algumas pessoas que não estão bem e vou lá bater nelas. E depois, elas têm toda a razão em pensar mal de mim. Na hora não penso direito… vejo aquele buraco de nada e fico com raiva. Acho um desaforo ficar triste por causa de poças d’água. Por que eu tenho esse vazio enorme e outras pessoas tem apenas uma leve depressão em suas vidas? Então, na hora, não levo a sério… assim não dá, não é?
Às vezes preciso de ajuda e preferem não levar a sério meu pedido de socorro, preferem achar que é outra coisa. Mas tudo bem, não tô tão mal assim. Estava mal há um tempo atrás, quando uma menina veio e me tirou da escuridão. Então, não me importo quando às vezes não quiserem me ajudar, afinal, acho que eu estou explorando cavernas para ficar bem. Não é obrigação de ninguém ficar disponível, ainda mais como se fosse um anjo da guarda em tempo integral.
É tão ruim estar instável! Quando eu estava casado eu gostava mais de mim. Fazer o que, não é?
Bom, acho que eu não me sinto seguro. Têm certas coisas que mexem aqui dentro, me deixando confuso.
Quando eu vi Jan pela primeira vez, eu senti uma força, uma coisa inexplicável… não conseguia parar de olhar. Conheci outras pessoas assim. Engraçado! Sinto uma coisa parecida por outras pessoas, às vezes. Não vou mentir que senti isso por outras pessoas… mas foram poucas. Queria encontrar alguém e sentir o mesmo, sei lá. Isso é muito doloroso. Tenho medo de não ter mais isso. Eita! Não posso chorar, tenho muita coisas para fazer hoje.
Depois de conhecer a Jan, nos casamos após 6 meses. Fico sempre pensando que foi a melhor coisa que fiz na vida, mas escuto sempre as vozes das pessoas dizendo que foi bobagem fazer isso, que tão rápido assim não ia dar em nada. Não queria ter essa dúvida… faz-me sentir culpado. Droga! Vou ter de falar sobre outra coisa, não posso chorar…
Acho que vou trocar a música que está tocando por outra. Assim, eu não tenho tanta vontade de chorar…
Esperem aí… nem lembro porque eu estava dizendo tudo isso.
Queria encontra alguém para poder dizer:
– Sinto sua falta. Fica comigo? Te amo, te amo muito…
Tudo é bom e ruim ao mesmo tempo. Estou conhecendo pessoas, pessoas as quais a gente se afasta – como sempre acontece, forças maiores interferem -, mas ainda assim tenho uma longa jornada junto à alguém. Está sendo divertido.
Esses dias pra trás, encontrei uma pessoa especial. Garanto que a amizade ainda vai salvar a minha vida…
Eu sei, tudo acaba um dia! Então, se não nos conhecermos, pulamos esse trauma. Mas a jornada solitária é sem graça, ou, pelo menos, menos divertida do que acompanhada de alguém que tem algo para dizer. Mesmo que o outro desça na próxima parada, o passeio é melhor com alguma companhia.
Puxa, tem coisa que é meio chata de dizer quando a gente não conhece bem a pessoa para quem fala…
Uma vez uma amiga me perguntou se eu tive vários casos ao mesmo tempo… a resposta foi:
– Sim, tive várias amores ao mesmo tempo, certa época. Uma delas foi Jan. Aconteceu de estar com duas pessoas na mesma casa, mas não no mesmo quarto, quer dizer, não estava fazendo nada obsceno – maneira delicada de dizer que eu não estava transando com duas pessoas ao mesmo tempo.
Todas as pessoas que estavam comigo, nessa época, sabiam umas das outras. E acredite ou não, eram avisadas que eu não pretendia “me livrar” das anteriores. Mas Jan expulsou todas, uma a uma. Não diretamente, mas foi dando um jeito de me deixar sempre ocupado, até dar um basta. Tive de escolher entre Jan e as outras pessoas. Sempre tive a sensação de ter feito a melhor troca da minha vida, mas agora, diante da separação, não tenho muita certeza do que é certo, melhor, bom ou qualquer coisa assim. Estou tentando manter a mente aberta, e não ter moral. Mas é claro (e ficou claro, na época) que ter muitos relacionamentos ao mesmo tempo era sinal de não gostar de nenhuma pessoa tanto quanto eu pensava que gostava.
Atualmente, saio com uma pessoa desconhecida a cada 15 dias, em busca de alguma coisa que eu nem sei o que é. É quase uma busca mágica, achando que, quando encontrar, vou saber o que eu procurava. Mas não vejo nenhuma pessoa por mais do que um encontro…
Quanto tempo uma tempestade pode durar? Uma tempestade pode durar.. sei lá… até 40 dias e 40 noites? O que é uma crise? Depois da tempestade ficamos mais fortes?
O que resiste a uma tempestade talvez não fique necessariamente mais forte. Pode ser ilusão, causada pelo tempo bom. Durante a tempestade, a sensação de que tudo poderia acabar mal pode fazer com que, com a melhora do tempo, nossas expectativas sobre a sobrevivência sejam muito grandes… fica difícil medir com certeza. Isso é tudo um “talvez”. No fim, estou apenas fazendo conjecturas sem maiores preocupações em relacionar isso com algo concreto.
Não sou “bom”, “bonito” ou o que quer que seja. Sou apenas eu mesmo e não há valor nisso: é como ser “inteligente”, ou “baixinho” ou “narigudo”… não faço de propósito. Aliás, se precisasse ser mais inteligente do que já sou, como às vezes a vida exige, também eu não poderia fazer nada. Não sou inteligente ou burro porque quero, mas porque algo (biológico, social ou espiritual) maior do que eu, me fez assim. Claro que o contrário pode acontecer… algumas pessoas querem (ou gostam) de ser burras. Mas é difícil julgar onde fica o livre arbítrio diante de tudo isso. Somos o que somos ou somos o que queremos ser? Se somos o que queremos ser, o que determina o nosso “querer” ser assim? Quando estou cercado de pessoas mais inteligentes do que eu fico pensando muito nisso… sobre não poder ser mais do que eu sou e eles não poderem ser menos do que são.
De qualquer maneira, diante disto, fica difícil decidir até quando ser bom. Devemos apenas ser até que não se possa mais ser ou ser enquanto não estamos sendo machucados por isso? Mas dá pra ser tão racional na hora de escolher? Acho que não. Talvez eu até possa fazer isso de maneira consciente e dar um basta quando isto pode estar me machucando, mas, de modo geral, nunca me lembro de pensar nesta possibilidade. Como eu dizia: sou o que sou, sem querer.
Ah, mas pra ser justo, tem de ver também o outro lado: também sou egoísta.
Bom, estou numa fase muito instável. Isso reflete diretamente nos meus relacionamentos: brigo com todo mundo, até com minha sombra. Turbulência, como eu havia nomeado há alguns dias atrás, quando explicava o que acontecia comigo para outra pessoa. Tempestade.
Acho que eu gosto de pintar a mim mesmo de tons mais bonitos do que os reais. Acho que sem as cores, o que eu tenho dentro me parece feio, cru e destruidor para as pessoas. Acredito que nesta fase em que estou sem a fina capa protetora de óleo, há muito atrito.
As pessoas têm isso… se você foi a vida toda brigão, as pessoas não ligam muito para mais uma briga. Mas se, pelo contrário, você foi de alguma forma cordial e atencioso, nestas fases de “briga”, o que as pessoas gostam de ver é egoísmo, má-fé, maldade, má-intenção e agressão.
Acho muito injusto que eu não possa ter meus curtos períodos de depressão, de fossa ou, como às vezes, de ausência de meias-palavras, de lubrificante ou de tato.
Como pessoa sem pele, percebo que a visão que as pessoas têm de mim é nojenta. Entendo a necessidade de distância; eu também quero distância, não quero que me vejam assim, que me achem feio.
Mas não sou feio, como também antes, com pele, não era bonito. O que elas não podem ver acima das sua próprias sensações de nojo, é que esta visão não é imparcial e que, principalmente, o asco delas me fere demais.
Sexta-feira saí com uma pessoa que me disse em um certo instante:
– Eu poderia ter feito uma descrição horrível de mim e talvez não estivéssemos aqui.
Essa pessoa estava se referindo a uma enorme cicatriz no rosto, que eu nem havia percebido que estava lá. Era fruto de um acidente de carro há quase 20 anos atrás, onde mais de 100 pontos haviam sido necessários para reconstruir aquela face.
Minha incapacidade de perceber detalhes só não é pior do que a minha capacidade de ler sinais e entender formas alienígenas de comunicação.
É bom conhecer novas pessoas.
Não sei bem para onde estou indo quando entro no abismo, mas sei que as pessoas não gostam e que não querem ir junto.
Seja lá o que eu disse no passado, por esta eu não esperava. Assim que voltei do isolamento lá de baixo, pareceu que a falta de minha pele tornou-se um grande espetáculo. Me chamaram para fora da caverna e agora acham que sou horrível. O que isto quer dizer? Quer dizer que não me escutaram, que não ouviram meu pedido para ficar sozinho, que acharam que eu estava sendo egoísta? Não entendo nada. Se me querem como estou, me amem como me monstro. Se não querem, então me deixem só, porque em essência, talvez, eu sempre tenha sido uma monstruosidade.
Ontem uma pessoa me mandou uma mensagem cheia de desaforos sobre minhas atitudes. Levou meu mergulho no abismo para o lado da ofensa pessoal. Depois, ainda acha que minhas brincadeiras estúpidas são uma grande ofensa. Também briguei com outra pessoa que acha que demonstrar qualquer coisa além do meu comportamento usual é reprovável, um tipo de crime que eu nem sabia que existia.
Estou desabafando demais, né? Desculpem-me, é que estou muito sozinho neste instante.
Mas estou aqui… talvez meio agressivo, violento para as pessoas. Mas o que eu quero é que olhem para dentro, bem dentro de mim e vejam que abrir o coração não é exatamente uma forma de agressão como tende a ser interpretado.
Bom, alguém tinha dúvidas sobre o que eu falei? Sobre a forma? Sobre o conteúdo? Sobre partes específicas ou sobre o geral? Pelo menos ainda não perdi a estranha mania de querer explicar tudo até onde puder. Então aproveitem… adoro saciar dúvidas. É só o que me sobrou para dizer.
E desculpem-me se a linguagem está crua e direta, ok? Não sei realmente se devo me desculpar, mas como cada vez que eu me comunico com alguém sou mal interpretado e agredido, melhor me precaver… estou cansado de apanhar.
Não sei mais o que é certo ou o que é justo, mas é bom saber que alguém, em algum lugar, pensa como estamos pensando. É bom pensar que existe esperança depois da tempestade, pensar que haverá um porto seguro onde as pessoas se encontrarão para confraternizar. É bom não ter sido bombardeado como inimigo porque fui longe demais, onde as pessoas não reconhecem mais minha nave.
Se eu pensar que não tenho amigo nenhum, vou ficar muito mal. É melhor não voltar meus pensamentos nesta direção… melhor pensar que eles não são capazes de compreender a gente suficientemente bem do que pensar que eles não são amigos.
O que acontece comigo? Nada além do que sempre tem acontecido… um vazio. Estar separado é uma barra pesada demais. Se eu não tivesse nada para, de vez em quando, iluminar minha vida, não sei se eu estaria aqui… se eu teria forças para ficar aqui. A vida perdeu a graça quando perdi algo que eu pensava ser eterno. Estou cansado de ouvir “a vida continua”. Talvez, ficar com raiva de tudo seja meu modo de levar as coisas, sei lá. Só consigo pensar na injustiça que é tudo isso. Não sei de quem é a culpa de termos expectativas altas na vida, mas elas estão lá. Descobrir que as coisas nunca mais serão como se esperava é algo quase impossível de encarar.
Possivelmente eu esteja no lugar errado e na hora errada, mas isso seria fácil de resolver se as pessoas deixassem eu simplesmente ser o que eu preciso ou ser o que eu quero, neste instante. Estou cercado de pessoas que não entendem isso, então, melhor ficar só. Nesta luta, inocentes acabam se machucando. Sou como um elefante ou uma baleia… não posso recuar e ir embora sem deixar algum tipo de enorme vazio, incômodo, talvez, mas real. As pessoas precisam entender, se quiserem alguma chance de ter relacionamento duradouro, que as coisas não são fáceis aqui dentro. Tenho um abismo para levar comigo aonde quer que eu vá.
Há alguns dias li uma mensagem de uma amiga que dizia, num primor de candura:
– Você é uma pessoa querida por mim. Eu vou te perturbar sempre que eu quiser, não importa a situação…
A verdade é que estávamos em uma certa sintonia porque havíamos nos conhecido há pouco e, ao contrário de pessoas que conheci há mais tempo, não senti, como das outras vezes, ela me batendo para que eu voltasse ao normal. Sinto que estou sendo tratado pelos outros como um “possuído” em plena idade média. É como uma sessão de tortura, uma em cima da outra, tudo para o meu bem… não quero isso. Esperava que essa pessoa fosse diferente. Mas o que eu queria das outras pessoas é essa abertura para me ouvir, para ver o que tenho a dizer, ao invés de escutar o tempo todo que estou errado, que meu jeito é errado, que o tom é errado, que o conteúdo é errado, que a forma é errada. Não quero que concordem comigo! Só não quero ser massacrado…
Comunicação é uma tarefa difícil… como saber se o que interpretamos é realmente o que foi intencionalmente escrito?
Tenho saudades de assistir televisão no final de noite junto a pessoa que escolhi passar o resto dos meus dias. Será que é tão difícil para os outros entender que não posso estar “estável” como eles exigem? Não estou pronto para ter de discutir nem paixões imaginárias nem nada efêmero. Tenho carências reais… sofro, sinto dor, me sinto só.
Vou interromper. Não quero mais escrever agora!
(um tempo em silêncio)
Engraçado… já briguei com muita gente por ter sido assim. Não estou em condições de garantir que eu não seja. Isso era o que eu dizia, há muito tempo, sobre não precisar mais:
– Já tenho tudo o que sempre desejei.
Eu dizia isso quando me referia a minha própria vida. Estava casado, amando, sendo amado, com uma vida maravilhosa que, se não me dava dinheiro de sobra, também não me deixava passar fome. Era algo que eu batizei de “teoria da batata frita”. É mais ou menos assim:
– Suponha que você venha andando pelo mundo, comendo de tudo, gostando de algumas coisas, não gostando de outras. Digamos que um dia encontre um prato “dos sonhos”, algo que o deixe extasiado e completamente satisfeito. Pode não ser a melhor coisa do mundo. Pode haver milhões de coisas muito melhores pelo mundo, mas após ter a sensação de ter encontrado algo ‘definitivo’, para quê ir atrás de outras coisas diferentes? Não, não sou ambicioso. Já encontrei o que me satisfaz. Já tenho mais do que jamais imaginei que teria um dia. Já encontrei a “batata frita” da minha vida e, portanto, posso comer isso pelo resto dos meus dias sabendo que sempre vou querer mais. Não há como ficar “cheio” disso. Nunca terei comido tanta batata frita que eu não queira comer mais, a ponto de precisar sair em busca de outras coisas. Se eu sair, é possível que encontre novas e boas coisas, mas para que correr o risco, se a batata frita me dá tudo o que quero?
Sobre o que eu falava na “teoria da batata frita”? Eu falava era sobre casamento, relacionamentos, amigos, trabalho e sobre um certo desconforto, uma certa “cobrança” que eu sentia em não ser “ambicioso”. O que eu dizia para as pessoas é que eu não era “ganancioso”. Mas ambicioso… não posso dizer que eu não o fosse totalmente: ter um tesouro e querer mantê-lo para sempre não deixa de ser um tipo de ambição. O que eu não entendia era essa ganância dos seres humanos, de correrem atrás de mais tesouros mesmo que já possuíssem outros maravilhosos. Isso não fazia sentido para mim.
Agora tudo mudou. Não tenho mais batata frita e perdi tudo o que sempre quis: uma família, uma pessoa que me amava, a qual eu tinha a satisfação de agradar para demonstrar o meu amor.
O momento pede reflexão. Existe chance de recuperar isso? Resposta: não. Posso ter outra família, claro, mas essa família que eu amava tanto nunca mais vai existir. Me parece um bom motivo para ficar parado, na chuva, esperando a morte por inanição. Morreu a esperança… o que restará para nos mover? Este é o meu momento. Estava distraído, achando tudo muito bonitinho… via flores pelos campos, passarinhos, sol e borboletas; agora, acho que eu estava iludido. Nada existe. Não sou amado, compreendido e estava vivendo em uma ilusão estúpida.
Saber que as coisas acabam não ajuda muito… daí o trauma. Quando eu estava casado, não pensava que poderia acabar. Agora isso não me sai da cabeça… daí a tristeza….
Depois de um tempo, todos temos expectativas. Usamos o “mostrar descontentamento” como um sinal de que queremos que o outro atenda nossas expectativas.
Não quero me relacionar com ninguém. Não entendo paixões por agora, não gosto de me relacionar sem paixão, não quero me relacionar assim, não posso pensar em mudar e ser assim e não acredito que alguém possa se apaixonar sem conviver. Erradas ou não, estas são as minhas crenças a respeito do assunto. Ainda estou chorando minha separação… ainda tenho um enorme abissal buraco aos meus pés. Que relacionamento eu posso ter com qualquer outra pessoa? Fica difícil para os dois. Para mim, que não estou a fim de conviver com uma pessoa e para a outra, que vai perceber como eu ainda sinto falta de Jan.
Estava acostumado com Jan a dizer tudo, o tempo todo. Jan era minha amiga… e mesmo nas questões de ciúmes, se eu dizia que uma certa pessoa me dava tesão, por exemplo, Jan tentava ver isso como algo positivo. Ela tentava ser aberta o máximo possível, para que lidássemos com isso. Resolvíamos tudo juntos. Eramos amigos além de um casal. Sinto falta disso nas pessoas… ficar escondendo que a faxineira me dá tesão não me parece motivo de censura. Acho que as pessoas não estão acostumadas a dizer a verdade umas para as outras. Um sistema no qual tudo o que é perguntado, é respondido com sinceridade extrema, pode não ser compatível com o que as pessoas estão acostumadas ou esperam da gente. Fui me acostumando a isto nos últimos anos, mas agora começo a perceber que minha vida sempre esteve cercada, nos bons momentos, de pessoas parecidas comigo, que podiam contar e ouvir tudo. Percebo também que ficar próximo a pessoas que não querem um comportamento tão aberto é prejudicial a minha saúde.
Eu digo “coisas ofensivas” há muito tempo. Eu me vejo sempre assim, fazendo coisas que podem machucar. Lido com o que eu penso ser “verdade”, e isso gera antipatia, dependendo de quem é atingido. Então sei que essas coisas de “não gostarem” sempre existirá para o resto da minha vida. O que eu não entendo é como certas pessoas têm a capacidade de serem compreensivas e outras, que me conhecem há tanto tempo, não têm essa capacidade ou vontade.
Sou paciente, claro. Estou numa fase mais “besta” e não tenho agido como sempre faço. Estou mais sensível a tudo, mas… normalmente não ligo tanto que não gostem. Aliás, muita gente nunca gostou do que eu faço. Estou preso a algo que não se resolve, um ponto pequeno, mas que atrapalha minha vida.
Eu tinha começado a chorar aqui nesse ponto, ontem. Não deu pra trabalhar mais. Depois, passei o dia chorando e resolvi “me fechar para o mundo” de alguma forma. Fiz algo que gosto: explorar buracos. Um dos planos de me afastar das pessoas era isso: fazer o que eu preciso fazer. Deprimido, mas trabalhando, que é como deve ser, né?
Acabei de me lembrar de um amigo. Isso aconteceu há mais de 10 anos atrás. Um dia, fui visitá-lo e encontrei o apartamento dele todo diferente.. foi a esposa dele quem me recebeu. Conversamos um pouco, pois eu também era amigo dela, e, depois de um tempo, perguntei por ele e ela me disse:
– Não estamos mais juntos… ele não está mais morando aqui.
Foi um choque…
Algumas semanas depois, quando finalmente estávamos eu e ele conversando a respeito disso, ele disse:
– Ela pintou tudo, apagou todas as poesias, né?
Enquanto casado, ele tinha as paredes do apartamento totalmente rabiscadas com poesias dele e de seus poetas preferidos.
Estávamos em um grupo de 7 ou 8 pessoas quando isso aconteceu. O grupo todo ficou em silêncio por alguns instantes quando ele disse isso… havia uma certa tristeza nas palavras dele. Então eu interrompi e disse:
– Não, não é verdade que as poesias foram apagadas… elas estão lá, ainda, só que embaixo da tinta.
As pessoas acharam graça. Um sorriso apareceu e um brilho no olhar surgiu nos olhos dele, como se tivesse dizendo: “Obrigado por me ter dito isso! Eu não tinha visto por este ângulo!”
É, mas as pessoas são complicadas. Não posso dizer que não tenha “traído” Jan, mesmo que tenha ficado “apenas” no “quase”. Não existe “apenas” e “quase”. Jan estava me deixando muito inseguro… as brigas eram constantes, existiam muitas provocações e ela mencionava frequentemente algumas de suas “paixões” (platônicas) que estava tendo. Cada vez eu me sentia mais excluído do casamento e, num certo momento, com 5 anos de casados, eu passei a noite com outra pessoa. Embora nada tenha acontecido, isso mudou minha vida. Decidi que iria “reconquistar” Jan. Eu queria estar casado, logo, passei a ser mais atencioso, mais romântico, mais emocional, mais animal. Tentei resgatar aos pouquinhos o início de nosso casamento, e felizmente, isso deu certo. Tivemos uma ótima fase. Mas Jan não conseguiu fazer o mesmo quando foi sua a vez de “decidir” o nosso futuro… Jan estava tendo uma atração forte demais por alguém do trabalho. Ela me dizia que, ao contrário de mim, se tivesse a chance que eu tive, não deixaria escapar. Iria “consumar o fato”.
Bom, acreditem, isso é natural, mesmo na intensidade que está parecendo. É normal olhar alguém na TV e sentir tesão. É normal para uma mulher sonhar com um “galã” da TV. É normal um homem ter atração por outras pessoas no dia-a-dia. O problema não é esse… o problema é “sublimar isso”, fingindo que não aconteceu (ou mesmo acreditar que não aconteceu). Pior é esconder isso “para não magoar o outro” ou qualquer outra alternativa doentia. A humanidade convive com isso, de maneira hipócrita. Isso não quer dizer que a atração aconteça o tempo todo, mas acontece. E, o melhor a se fazer é ser honesto um com o outro o máximo que for possível para cada um.
Quando fiquei com outra pessoa, falei com Jan na mesma noite em que isso aconteceu. Eu nem poderia ter feito diferente… Jan já tinha feito algo parecido antes, uns dois anos antes dessa ocasião. Se Jan podia superar os desejos de beijar alguém, em certa ocasião, eu também poderia. O caso parecia superado. Voltamos a nos “comportar” apaixonadamente, como sempre, mas, é claro, por ocasião da separação, tudo reapareceu. Jan lembrou das vezes em que eu tinha tido atrações por outras pessoas e não das vezes em que nada aconteceu. É normal querer por a culpa em mim por não gostar mais de mim.
Mas a traição não foi assim. Não saí simplesmente “planejando” isso. Ela era uma conhecida do trabalho, era aniversário dela, sua casa foi a recepção de uma janta para colegas e por fim, as pessoas foram embora e eu fiquei para conversar. Eu tinha bebido e estava carente, como ocorre em diversos momentos de um relacionamento… Jan vinha me tratando muito mal há semanas. Essa pessoa foi ficando “insinuante”, provocante e, ao invés de encontrar alguém para conversar, acabei envolvido. Por algumas horas, lutei contra meu desejo do momento. Acho que mesmo estando sob efeito do álcool, me comportei bem e não fiz nada além de um beijo que recebi e que não recusei… mesmo morrendo de tesão, não fui além daquele beijo.
Jan, nesta época, já me deixava confuso. Ela falava em separação, que eu devia procurar outra pessoa, que não sentia mais vontade de pertencer a um casamento. De alguma forma, eu me senti empurrado… foi Jan que insistiu que eu fosse na festa, que me divertisse. Quando isso realmente aconteceu, o susto que eu tomei me fez recobrar a consciência sobre o que eu queria realmente: apesar de ser paciente nas brigas com Jan, decidi que eu iria me esforçar muito mais. Decidi que eu não queria outra pessoa, por mais sedutora que fosse. Decidi reconquistar Jan tendo o dobro da paciência, o dobro da atenção, refazendo cada coisinha que eu sempre tive de uma maneira especial e sendo mais do que sempre tivera sido, mesmo nos momentos bons do início do casamento.
Não sei se isso não foi pior… se isso não estragou tudo. De certa forma, era Jan que deveria ter feito isso e não eu. Era Jan que estava me perdendo, naquela ocasião, me “colocando para fora” do casamento. Isso até Jan concorda, porém tem explicações psicológicas complicadas, algo que trouxe da família dela, coisa de infância.
Eu sei que eu devia ter feito isso antes de ter acontecido algo mais sério, mas acredite, quando a gente é jovem – a gente sempre é – não temos experiência. Só se tem isso quando não dá mais para aplicar. Se eu soubesse, ao ir para a festa, que isso poderia acontecer, eu não teria ido. Paciência! Errei, sou humano. Mas não posso colocar a culpa de tudo em um momento de fraqueza que teve uma influência direta de Jan. Se eu fizer isso, terei de admitir que não podemos viver nunca felizes no universo. Todo mundo erra. Se os erros não têm volta, como ficaremos todos? A frase “errar é humano” deve ter um significado para todo mundo, contanto que haja aprendizado, não é?
Considero um erro eu ter ignorado sinais que mostravam claramente que tudo poderia chegar nesse ponto. Não me culpo. Meu erro foi subestimar que tudo é possível, que tudo pode acontecer. E eu que achava que estava imune a isso. Estarei preparado para a próxima vez… acho que não corro o risco de fazer como certas pessoas que aprovam a própria conduta ou a repetem, dizendo para si mesmos que nada podem fazer. Eu não pude fazer nada, mas da próxima vez poderei. É tarde para ter influência no meu casamento, mas não para um próximo relacionamento.
Tivemos várias crises ao longo do casamento: uma no início, outra aos dois anos e depois, nos finais de ano até a separação. Não posso confundir uma das crises com uma crise única, pois quando Jan entrava em crise por causa da família – o final de ano era uma época terrível para ela – ou em crise profissional, ela sempre jogava a culpa no casamento. Eu sempre fui paciente e esperava tudo passar e voltar ao normal.
No entanto, existiu uma crise séria, nos últimos dois anos de casamento. Sim, mas não posso confundir isso, como se fosse um prolongamento de uma crise de 5 anos atrás. Senão, teria de considerar outras crises também nessa contagem pra dizer que o casamento foi uma crise única desde o primeiro dia. Eu sei que traição é uma falta imperdoável e que, talvez, isso tenha sido a causa adormecida de uma não reconciliação no final dos 10 anos. Mas não acredito nessa hipótese! Seria muito simplista da minha parte. É preciso encontrar e conhecer o contexto de cada crise de cada briga ou haverá um reducionismo a um fato só.
Este momento de “fraqueza” – traição – havia sido construído há muito tempo, aos dois anos de casado, quando, de maneira crescente, Jan me “empurrava” para fora da relação com brigas constantes e sem sentido, talvez por alguma culpa na consciência. Talvez eu tenha sido pouco paciente. Jan sempre foi muito mimada, centrada nela mesma, filha caçula de uma família de seis filhos. Sempre esteve acostumada a fazer o que queria e como queria, e é possível que esse jeito irresponsável de levar a vida tenha piorado tudo… nem sempre fui paciente. Era nesses momentos de crise que isso aflorava. Nunca vou saber se, nessas horas, a culpa era minha, por não ter sido ainda mais paciente do que eu fora ou se, realmente, tratava-se de momentos “incontornáveis”. De qualquer forma, foram vários momentos de crises, e não um único que se prolongou.
Não sei… faz mais de 10 anos que não me apaixono. Suponho que agora eu seja exigente, já que não me apaixono mais e tenho conhecido muitas pessoas.
Agora sou solitário. Não frequento nenhum lugar. É preciso ficar 10 anos casados para entender que os amigos do casal não são amigos de cada um dos dois. Isso é estranho, mas verdadeiro. Os antigos amigos de solteiro desapareceram com o tempo, até por causa do casamento. Os novos amigos são muito recentes… fica difícil eu me encaixar se não tiver pelo menos uma companhia para fazer “programas de casal”. Então o que sobra para fazer é um lanche de vez em quando em algum intervalo. É difícil transpor esta barreira… sou meio lerdo para fazer amigos. Geralmente, eu preciso de muitos anos para chegar num nível de amizade que eu considere ideal.
Esse abismo me faz pensar…
Eu estava assistindo um filme chamado “Sonhos de uma noite de inverno”. Básico, gostoso, perfeito… um filme tão bom quanto um beijo. Ele retratava os problemas de um grupo de teatro. Vi perfeitamente tudo o que Jan vive: angústias, frustrações, medos, prazer, sucesso, reconhecimento – tudo na medida certa. Definitivamente, este foi o melhor filme sobre teatro que vi na vida. Chorei um pouco durante o filme, e mais um pouco depois. Fui trabalhar, mas antes, passei na locadora e comprei uma cópia do filme. Comprei para dar a Jan, mas depois, me lembrei que não podia fazer isso. Eu não era nem mais amigo, nem nada. Jan não iria gostar. Mais tarde, aqui, fiquei pensando sobre estar longe de Jan… “desesperança”. Fiquei muito mal. Chorei, chorei muito, chorei até dormir.
Não sei onde colocar meus beijos. Perdi a noção do que é desperdício. Pensei: para que comprar uma cópia do filme para Jan? Provavelmente Jan já viu esse filme… é isso um desperdício de beijo? Querer dar carinho a quem não mais o quer?
Um dia uma amiga me perguntou sobre o casamento. Vendo este enorme vazio na minha vida, esse buraco no meu chão, achou que o casamento devia ser uma coisa muito ruim e que eu, provavelmente, achava que ela não deveria se casar:
– O casamento não valeu a pena?
Sei que valeu a pena, sim. Num formulário, há pouco tempo, tinha um campo para preencher que era assim:
– Qual a melhor coisa que você já fez na vida?
E a minha resposta, prontamente, foi:
– Casar!
Casamento é como sorvete. É como chocolate. É… ótimo!
Nunca negarei que casar é maravilhoso. Todo esse meu estado de tristeza e depressão é pelo fato de meu casamento ter sido a melhor época da minha vida. Se tivesse sido ruim, eu estaria bem com a separação… teria me recuperado mais rápido. O problema é esse: quem vai se “encaixar” tão perfeitamente na minha vida como Jan? Quem vai despertar meu desejo cada vez que a vejo, mesmo depois de tantos anos? Quem vai me deixar orgulhoso, alguém que eu possa admirar sem hesitação? Quem vai me completar em tantas coisas como Jan completava?
Não é a “pessoa”, mas sim, o “relacionamento” que me deixa deprimido. Se uma pessoa que tinha tanto a ver com minha vida, coisa tão rara, não durou quase nada como relacionamento, apenas dez anos, imagino qual a chance de eu ser feliz com o resto das pessoas que tenho conhecido e que não se encaixam em meu jeito de ser, pensar, sentir e agir…
Isso tudo é algo que dá a sensação de impotência diante do destino. Sinto a incapacidade de ser feliz, com alguém, novamente… incapacidade de me livrar do abismo. Isso faz com que eu veja que as minhas melhores chances de voltar a viver é ficar completamente sozinho. A impressão que dá é que já vivi toda minha cota de felicidade possível, a noção de que eu nem precisaria mais sobreviver por aqui. Mas tudo isso não é nada. Essa tristeza imensa não é nada comparada com a felicidade que eu tive, então eu jamais poderia dizer: “não se case”. Eu digo: case, seja feliz, viva plenamente e cuide de todos os pequenos momentos, como eu fiz, para não esquecer de nada, pois se durar pouco, como o meu casamento durou, ainda assim terá valido a pena.
Ah, mas: “depois do choro vem sempre a bonança”…
Eu poderia colar aqui aquelas frases dos diários de meninas que dizem:
– Sorria, mesmo que seja um sorriso triste, porque mais triste que um sorriso triste, é a tristeza de não saber sorrir!
Mas é uma grande bobagem, claro. É preferível chorar muito do que conviver com essas obrigações que não gostamos. Eu também tinha de fazer algo outro dia e fiquei dormindo, escondido, com medo. E comer fígado é uma merda… se a vida é fígado, melhor não comer.
Mas quem sabe estamos enganados? Talvez não seja fígado, seja sorvete e nem tenhamos percebido! Como eu disse noutro momento, fiquei aqui com um beijo a ser dado e sem uma boca a beijar, porque meu desejo morria comigo. A boca de Jan vinha à minha mente, mas não mais estava aqui. Mas, espere! Eu estava com então comprada fita “Sonhos de uma Noite de Inverno” na mão e levei até Jan, já que ia passar lá perto. Chegando lá, perguntei se Jan já conhecia o filme e Jan disse:
– Sim! Esse filme é maravilhoso! É um filme incrível!
Daí eu disse:
– É para você… é um presente. Quando vi lembrei de você, e acho que ele deve ser seu…
Jan me abraçou e agradeceu, contente. Então mesmo sem boca, o beijo foi dado, não acham? Eu estou feliz com o gesto… Jan está feliz com a vida. Estamos todos felizes da maneira que nos é possível… é bom poder dar um beijo de coração e alguém que gostamos receber esse beijo de coração… aberto.
É isso, talvez a vida seja fígado. Alguns nascem gostando dessa porcaria nojenta. São como aquelas pessoas que estão sempre sorrindo, belas, com a vida cheia de sol, passarinhos na janela e borboletas…
E tem as pessoas que odeiam fígado, que entre ter de comer isso, sentir o cheiro desagradável da coisa ou morrer, preferem não viver. Mas tem o caso intermediário… a maioria: pessoas que não odeiam fígado – apenas não gostam muito ou nunca provaram.
Se um dia tiverem de comer fígado, coloquem muito tempero, cebola, alho ou algo que tire o sabor ruim da carne…
O grande lance da vida é esse: levar a vida, que tem gosto ruim, com um monte de batata frita e tudo o que tiver de bom, pra distrair a gente daquele cheiro e gosto horríveis.
© Victor M. Sant’Anna 2002
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