Alice De Jesus (2f)


Prefácio

Agora, em 2002, percebo como algumas indicações de luz e interpretação estavam fora do propósito, já que coloquei no papel algumas de minhas próprias ideias sobre como eu gostaria que a peça fosse encenada. Tenho sido um pouco mais modesto, agora que estou longe do teatro. Portanto, descartem todas as indicações. Elas são uma espécie de anacronismo.

Algumas ideias continuam válidas. Afinal de contas, textos para “esquetes” são sempre um pouco difíceis de serem encontrados. A ideia de uma peça inteira, porém curta, para o público de teatro ainda parece ser algo interessante hoje em dia.

Victor M. Sant’Anna, 30 de maio 2002.

 

Introdução

Esta peça faz parte da série de “Peças Anexas”, ou seja, é um texto dramático para ser encenado junto à peça principal. As peças anexas têm a vantagem de serem curtas, possibilitando experiências cênicas comuns somente em laboratórios de teatro e peças acadêmicas. Comumente, elas servem de “aperitivo” à peca principal, permitindo ao espectador não só uma distração a mais, como também uma maneira de conhecer mais o trabalho de um mesmo diretor ou grupo, durante o mesmo dia.

Alice de Jesus é uma peça simples, um pequeno drama. Este texto me surgiu a mente em janeiro de 1990, na tentativa de criar algo de curta duração, para ser encenado antes de uma comédia.

Alice é uma jovem oprimida pela mãe. Não há muito o que se possa fazer ou dizer. O texto é simples e de fácil entendimento. Todos os símbolos utilizados são claros, tornando esta peça ótima para grupos iniciantes. Experiências são bem-vindas, afinal, este é o espírito presente por trás de cada “Peça Anexa”.

 

Alice De Jesus

 

 I Parte

Cena

No palco, há um varal (uma corda pendurada de lado a lado do palco) e algumas roupas presas a ele.

Roteiro

Uma mulher (de costas para o publico), vestida com roupas simples (como uma lavadeira, por exemplo), pendura algumas roupas, tirando-as de uma bacia que arrasta com o pé, no chão, à medida que anda. Fica assim até pendurar toda a roupa. Esta cena leva alguns minutos. Ela volta-se para o público e fala como estivesse contando um segredo.

Mãe: A minha filha se forma hoje…

A luz geral diminui enquanto o foco do lado esquerdo aumenta, onde surge Alice. Quando a luz estiver somente na Alice, ela fala e sua mãe sai. Ela veste uma toga ou outra roupa qualquer que remeta a sua formatura naquele dia.

Alice: Eu sei que é ingenuidade minha. Mas eu não podia fazer outra coisa! A única maneira de escapar, era fazer o que a minha mãe me ordenava…

Na verdade ela não dava uma ordem. Era uma mãe muito legal. Ela apenas quis para mim o que não teve. Ela não mandou realmente. Ela pressionou-me como uma bonequinha. Ela chantageou-me com delicadeza e amor. As mães querem o melhor para suas filhas. Ela me pressionou. Ela fez com que eu me formasse, mesmo contra a minha vontade. Ela fez para mim o que era o melhor… para ela.

Quando eu era pequena, eu mexia na boca das pessoas. Ela dizia: “Quando crescer, vai ser dentista!”. Para mim, era só brincadeira de criança. Para uma mãe, era um presságio!

Ela sempre quis que eu tivesse o melhor, mesmo não podendo. Ela sempre quis que eu fosse a melhor. Desde pequena, sempre estudando. Eu sempre quis ser a melhor da aula. Eu sempre fiz para minha mãe o que era melhor para mim…

Ela quis para mim o que não teve para ela: oportunidade! Uma chance de ser livre! E foi isso que ela construiu em mim: uma pessoa livre! Posso ir onde eu quiser. Se eu quiser, posso largar tudo neste instante e ir embora. Eu sou livre! Minha mãe me fez livre!

Aos poucos, o sorriso que a personagem tem no rosto vai desaparecendo. Em seguida, um outro sorriso, carregado de cinismo invade seu rosto, que vai se transfigurando até transbordar raiva. A luz diminui e ela sai.

 II Parte

Cena

Quando a luz geral aumentar novamente, a mãe estará sentada numa cadeira de balanço, na lateral esquerda do palco, à frente do varal.

Roteiro

Ela está esperando Alice e está aflita. Procura com o olhar alguma coisa, sempre balançando a cadeira. Passa-se algum tempo antes de Alice entrar em cena. Às vezes, a mãe levanta e olha por uma janela imaginária, como se pressentisse a chegada de Alice. Volta, tenta dormir, não consegue. Alice entra pela lateral direita. Ela tenta entrar devagar para não acordar a mãe. Está sem a toga. Alice atravessa o palco na ponta dos pés, bem devagar, até postar-se atrás da cadeira da mãe.

Mãe: Por que demorou, Alice?

Alice dá a volta até a frente da cadeira e beija sua mãe nas mãos. Alice senta-se ou ajoelha-se na frente da mãe, que levanta, vai até a platéia e começa a discursar.

Mãe: Alice! Isso é hora de chegar? Foi isso que você disse que ia fazer? Você prometeu que ia chegar cedo, não prometeu? Você não disse que ia voltar antes que eu reparasse? Que eu não ia sentir nada? Você não disse que ia ser rápido? Acha cedo? Acha cedo essa hora? Acha que é cedo chegar nessa hora?

Alice está quieta, olhando para a cadeira.

Mãe: É assim que você me trata? É assim que você trata sua própria mãe? A sua mãe, que fica aqui lhe esperando? A mãe que acredita quando a filha diz que vai chegar cedo? Por que, Alice? O que foi que eu fiz a você? O que foi que eu fiz?! Diz! Por que me machucar assim? Por que você me magoa? Eu fiz alguma coisa? Eu fiz alguma coisa errada? É assim que você trata a sua mãe? Por que, Alice? Eu sempre dei tudo a você! Eu não dei? Deixei de dar alguma coisa, filha? Deixei? Não cuidei da minha filhinha esses anos todos? Não me sacrifiquei para dar tudo o que uma pobre mãe pode dar? Nao dei para minha filha educação? Não dei saúde? Não dei o melhor? Responde, filha! O que foi que eu não dei? Por que você faz isso comigo (vai ficando cada vez mais brava)? Responde, Alice! Por que me magoar desse jeito? Quer me matar de desgosto? Afinal, por onde é que você andava?
Alice: (vira para a mãe e responde) Eu só saí um pouco, com um amigo…
Mãe: Amigo? Prefere ficar com um amigo do que com a própria mãe? A mãe que sempre deu tudo pra você? A mãe que sempre fez tudo por você? Alice… (ternamente) Eu não quero que você fique triste ou infeliz. Eu só quero o que é melhor para você. Se você acha que deve ficar com um amigo até mais tarde, então eu deixo… eu quero que você pense bastante nisso. Depois, se você achar que eu não mereço, não precisa me dar atenção. Eu posso entender. Eu nasci mesmo para sofrer. (finge ser compreensiva) Por que não voltou mais cedo e trouxe seu amigo aqui em casa? (espera um pouco pela resposta e então termina) Eu faço tudo por você e é assim que você me paga…

A luz escurece um pouco. Alice levanta-se e vai até a mãe, que está parada, de frente para o público. Alice fala para a mãe, como o desabafo de alguém que fala sozinha para um retrato.

Alice: Mãe… eu conheci alguém. Ele me disse… ele disse que gosta de mim! Mãe! Eu queria tanto lhe contar! Ele gosta de mim! (aos poucos, vai deixando de falar para a mãe e vai falando para a platéia) Ele gosta de mim e eu gosto dele! Ele gosta de mim e eu não consigo dizer para você! Eu não consigo lhe dizer que estou feliz! Eu nunca consigo lhe dizer nada! Eu queria lhe dizer tanta coisa… eu queria lhe dizer e não consigo! Eu queria lhe mostrar quem eu amo! Eu queria que você conhecesse meus namorados! Eu queria que você fosse minha amiga! Que você me entendesse! Eu tenho tanto medo! Eu tenho tanto medo de lhe machucar, de lhe magoar…

A luz vai escurecendo. No canto esquerdo do palco, um foco de luz (mesma posição do primeiro foco) aumenta. Alice aproxima-se dessa luz e entra nela enquanto a mãe sai pelo outro lado.

Alice: Quando eu era pequena, minha mãe dizia “Alice, quando você crescer, você não vai me deixar sozinha”. Eu sempre pensava “Nunca vou deixar minha mãe sozinha! Nunca. Nunca vou deixar minha mãe sozinha”.

A luz geral volta a crescer. Na cadeira, sentada, a mãe fica balançando. Levanta, enquanto a música “Parabéns pra você” toca. Sai pelo lado direito e volta com uma cadeira de balanço. Arrasta a cadeira de balanço e a posiciona simetricamente à primeira cadeira, ambas de frente para o público; a primeira cadeira está do lado esquerdo e a segunda, do lado direito.

Mãe: Vem experimentar seu presente, Alice! (vai até a cadeira esquerda e senta)

Alice senta na cadeira direita. As duas ficam balançando. Alguém vem por trás do varal e afasta as roupas do meio. No lugar, pendura um lençol que serve de tela para alguns “slides” de bolos de aniversário, projetados (por trás) quando a luz diminui bastante. A música “Parabéns pra você” toca diversas vezes, repetidamente. A música pára. Quando a luz subir novamente, as duas se levantarão e se abraçarão.

A luz vai diminuindo e um foco central sobre as duas aumenta. A mãe sai pela esquerda enquanto Alice fala como se ela estivesse ali.

Alice: Mãe, eu queria tanto te agradecer. Você sempre me dá o que é melhor para mim… Muito obrigado, mãe!
Mãe: (somente a voz) Recolhe a roupa para mim!

Alice recolhe a roupa e coloca na bacia. A luz geral aumenta um pouco. Inclusive, ela recolhe o lençol que está pendurado. Alice volta até o centro do palco, debaixo do foco central. A luz geral diminui novamente. A mãe volta com a toga e começa a vestir Alice. Um outro foco sobre a cadeira esquerda começa a crescer. A mãe vai até o fundo do palco, que está escuro. Alice a olha e espera, sem entender. A mãe volta com a corda do varal e amarra a cintura de Alice com a corda. Sai da luz e vai até a cadeira da esquerda. Ela amarra a outra ponta da corda na cadeira e senta-se. Alice examina a corda

Mãe: Tchau, Alice. Volta cedo!

A luz sobre a mãe (cadeira esquerda) diminui até apagar totalmente. Fica somente o foco central sobre Alice. Ela volta-se para a platéia e, enquanto a luz diminui bem devagar, diz:

Alice: Obrigada, mãe.

A luz apaga totalmente.


© Victor M. Sant’Anna 2002
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